Há 2 anos e nove meses, a menina Beatriz foi assassinada em Petrolina de forma brutal. Até o momento ninguem foi preso. O crime aconteceu no dia 10 de dezembro de 2015, durante uma festa no Colégio Auxiliadora.
Em Brasilia, há 45 anos, Ana Lídia era levada com vida do colégio e encontrada morta, no dia seguinte, nua, com os cabelos louros cortados de forma irregular, bem rente ao couro cabeludo, e violentada, em uma cova rasa no cerrado. Tocada durante o mais duro período da ditadura militar, uma investigação cheia de falhas resultou em impunidade.
Na região do Vale do São Francisco quase 3 anos depois os pais e amigos continuam pedindo justiça. O assassinato de Ana Lídia se transformou em um livro policial escrito pelo jornalista Roberto Seabra.
Na obra Silêncio na cidade, da Editora Camará, lançada no fim do ano passado e relançado na 4ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, mês passado, ele narra a história com adaptações, sem compromisso de retratar a realidade ou desvendar o crime.
Pairavam suspeitas sobre filhos de poderosos. Brasília nunca soube quem foram os algozes da menina vítima do primeiro crime a abalar toda a capital. A cidade ainda em construção perdia a inocência. A Brasília do início dos anos 1970 tinha população e ritmo de interior. Os crimes se restringiam a pequenos roubos e furtos. As drogas do momento eram a maconha e a cocaína. Não havia crack.
Playboys disputavam rachas nas largas, vazias e não monitoradas avenidas. Ana Lídia morava com os pais, Eloyza Rossi Braga e Álvaro Braga, servidores do Departamento de Serviço de Pessoal (Dasp), em um apartamento do Bloco 40 (hoje Bloco B) da 405 Norte. Além da menina, o casal era pai de Álvaro Henrique Braga e Cristina Elizabeth Braga.
A caçula era o xodó da família. Muito protegida, não brincava nos pilotis, não tinha amiguinhos nem saía de casa desacompanhada. Com 7 anos, Ana Lídia cursava, pela manhã, a 1ª série do ensino fundamental da escola Madre Carmen Salles, na 604 Norte, perto da casa dela. No turno vespertino, no mesmo colégio, tinha aulas de reforço — às terças e sextas-feiras — e de piano — às segundas, quartas e quintas-feiras. Como sempre trabalhou, Eloyza contava com a ajuda de uma empregada. Rosa da Conceição Santana estava com a família havia 20 anos.
Em 11 de setembro de 1973, antes de seguirem para o trabalho, os pais levaram Ana Lídia à escola. A deixaram no pátio às 13h50. Por volta das 16h30, como de costume, Rosa foi buscá-la a pé. Ao procurar a menina, recebeu a notícia de que ela não havia comparecido ao colégio naquela tarde. Preocupada, Irmã Celina, diretora da instituição, telefonou para a mãe da aluna a fim de certificar-se de que ela fora deixada no colégio. Começava o pesadelo.
Testemunhas contaram que, logo após os pais de Ana Lídia a deixarem na escola, um homem alto, loiro, de cabelos compridos, com blusa branca e calça verde-oliva, a abordou. Ele não deixou a menina entrar na sala de aula. Vinte e duas horas depois, policiais civis encontraram o corpo da menina em um matagal próximo à Universidade de Brasília (UnB).
Próximo ao local em que ela foi enterrada havia duas camisinhas. O laudo do Instituto de Medicina de Legal (IML) atestou que a morte se deu por asfixia, provavelmente provocada por sufocação, entre 4h e 6h de 12 de setembro. Havia ainda manchas roxas e escoriações em várias partes do corpo. O exame comprovou também o estupro da criança.
“A polícia só descansará quando o responsável pela morte da menor for localizado e preso”, garantiu o então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, coronel Aimé Laimaison, em 12 de setembro de 1973. Em depoimento, o jardineiro do colégio, Benedito Duarte da Cunha, descreveu o homem com quem a criança saiu do Madre Carmem Salles e contou que Ana Lídia não parecia assustada ou nervosa. Ao contrário, deixara o colégio animada e alegre. As características físicas batiam com as de Álvaro, irmão e padrinho de Ana Lídia.
Álvaro tinha 18 anos, dois a menos que a irmã mais velha, Christina. Para os pais, era absurda qualquer suspeita sobre o filho. Eles afirmaram que Álvaro estava no carro quando deixaram Ana Lídia na escola e foi, em seguida, levado à Rodoviária do Plano Piloto para buscar informações no Detran sobre o processo de habilitação.
Apesar de ainda não ter carteira de motorista, ele ia diariamente de moto — presente do pai — para o colégio Laser, na Asa Sul. “No dia 11, inclusive, ele foi flagrado em uma blitz, e nós ficamos preocupados”, justificou, à época, Eloyza. Durante a apuração, o Ministério Público encaminhou ofício ao Departamento de Trânsito para saber se alguma operação havia sido feita naquele dia. O órgão negou ter havido qualquer ação de fiscalização no DF naquela data.
Os investigadores trabalhavam com a hipótese de Ana Lídia ter sido morta em função de um possível envolvimento de Álvaro com o tráfico de drogas. O irmão de Ana Lídia teria dívidas de drogas e o sequestro da irmã seria uma maneira de resolver a pendência. O credor seria Raimundo Duque Lacerda, funcionário do Dasp, subordinado da mãe de Ana Lídia, e conhecido pela personalidade descontrolada. Além de problemas com bebida e drogas, ele foi acusado de ser “um dos principais traficantes de maconha do DF” pelo então chefe de polícia, Aderbal Silva.
Quatro dias depois do crime, ao saber que era um dos suspeitos, Duque arrumou documentos falsos e fugiu. Em cinco meses, andou por cinco estados, até ser preso em Conceição do Araguaia (GO) e transferido para Brasília. Em seguidos interrogatórios, o irmão da vítima assumiu ter fumado maconha apenas três vezes. Depois, passou a negar o uso da substância. Negou qualquer envolvimento com o rapto e a morte de Ana Lídia, assim como Raimundo Duque.
Paralelamente, o Ministério Público do DF iniciou uma investigação. Procurador-geral de Justiça do DF à época, José Júlio Guimarães Lima designou o promotor José Jerônymo Bezerra de Souza para o caso. Ele averiguou denúncias contra Alfredo Buzaid Junior, filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, e Eduardo Ribeiro de Rezende, filho do também então senador Eurico Rezende. José Jerônymo disse não ter encontrado indícios que ligassem os dois ao crime. O mesmo ocorreu com a suposta relação da morte da criança com traficantes.
Durante a investigação, o promotor, que depois prestou concurso para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) e se tornou desembargador, notou uma “certa dose de cinismo” e de frieza por parte de Álvaro. José Jerônymo se convenceu de que Álvaro retirou a garota da escola, mas de que não havia participado da morte e do estupro da irmã.
A defesa incondicional do filho feita pelos pais de Álvaro chamou a atenção do MP. Um fato narrado em depoimento pela irmã Sacrário, funcionária da escola, ajudou a formar a convicção da promotoria. Ela estava no apartamento dos Braga quando a mãe soube da morte de Ana Lídia. Após abraçá-la, o marido teria dito: “Eloyza, Deus queira que não seja o que estou pensando. Depois disso, vêm coisas piores”.
Com a certeza da participação de Álvaro e muitos indícios que ligavam Duque ao crime, em 29 de maio de 1974, o MP contrariou o inquérito policial, que afirmava não ter provas contra os suspeitos, e pediu a prisão preventiva da dupla. A Justiça acatou.
Eles ficaram trancafiados por mais de um ano, à espera do julgamento. De acordo com o Ministério Público, enquanto ao primeiro coube a responsabilidade de tirar Ana Lídia do colégio, o segundo torturou, matou e violentou sexualmente a criança.
Em 16 de junho de 1975, o juiz Dirceu de Faria, da 2ª Vara Criminal, absolveu os réus baseado na denúncia de que o sequestro havia sido combinado por Duque e Álvaro. Para o magistrado, não havia provas nem que a dupla se conhecia. Ambos sempre alegaram que se viram pela primeira vez só no dia da prisão. O MP, no entanto, apresentou provas da ligação entre eles, como o depoimento de testemunhas, e decidiu recorrer da decisão. Mas, em 2 de dezembro de 1977, a 1ª Turma do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios confirmou a decisão do juiz Dirceu.
Os promotores de Justiça ressaltaram falhas na investigação, que, segundo eles, começaram poucas horas após o rapto de Ana Lídia. Apesar de o desaparecimento ter sido comunicado à polícia menos de três horas após o sumiço, o inquérito só foi aberto seis dias depois. Com isso, os primeiros depoimentos prestados pela família nunca constaram no processo, assim como o retrato falado feito a partir do relato de uma dona de casa que viu um homem acompanhando a menina em direção à UnB.
Na época do crime, a polícia ignorou outras pistas, como o álibi usado pela família de Álvaro para inocentá-lo. A justificativa é de que ele teria ido à Rodoviária e ao Detran. As marcas de pneu de moto encontradas ao lado da vala onde estava o corpo de Ana Lídia não foram confrontadas com a Yamaha de Álvaro. Os investigadores não foram às poucas farmácias do Plano Piloto apurar vendas recentes de camisinha. Na década de 1970, a população não tinha o hábito de usar o protetor, por isso poucos estabelecimentos vendiam preservativo.
O crime prescreveu em 11 de setembro de 1993. Raimundo Duque morreu em 2005, em Anápolis (GO), aos 62 anos, de complicações decorrentes do alcoolismo. Policiais prenderam Raimundo dois anos após o crime por falsidade ideológica. Tentou se passar por outra pessoa para evitar morrer, segundo ele. Depois que saiu da prisão foi para o Rio de Janeiro. Vendeu ouro, roupas, caixão, até se mudar para o interior de Goiás. Em 2003, por telefone, deu a última entrevista, ao Correio.
À época, aposentado, Duque vivia com um terço do salário que ganhava no emprego. Morava com a mulher e uma filha de 19 anos. Ele jurou inocência. “Eu era muito doido, fumava maconha, cheirava cocaína, me picava com cocaína, e a Polícia Federal nunca conseguia me pegar. No dia da morte da menina, fui lá prestar solidariedade porque era muito amigo da mãe da menina, da família. Quando chego lá, só tinha polícia. Logo depois, eu fui para Mato Grosso. Estava de férias e fui visitar meu pai. Prestei depoimento, às vezes dopado, drogado e, às vezes, bêbado”, disse.
Duque ainda acrescentou: “Minha foto saiu na televisão e nos jornais. Sei que os policiais, nos dias 14 ou 15 de setembro de 1973, receberam ordens para abafar o caso e que, segundo os federais, tinha gente importante na jogada. Não posso falar se foi o ‘B’(Buzaid), porque não gosto de condenar ninguém sem prova. Mas tudo indica que foi ele. Fomos julgados. Não tinham provas contra a gente. O crime foi uma coisa diabólica. Só Álvaro e eu pagamos o pato. Pra mim, Álvaro é inocente. Foi outro escolhido para bode expiatório. A primeira conversa da Federal é que ele estaria devendo meio quilo de cocaína para o filho de um ministro em Brasília. Depois foi desviada para cima de mim."
“Foi uma maldade muito grande e, por fim, não se descobriu nada. Se estiver vivo, o matador continua em liberdade. Se morto, foi dado como inocentado, porque ninguém nunca descobriu quem foi”Safe Carneiro, advogado que defendeu Álvaro Henrique à época
A mãe de Ana Lídia, que sempre afirmou não acreditar no envolvimento do filho, morreu em março de 2005. O pai, Álvaro Braga, se mudou com a família para o Rio de Janeiro após a absolvição do crime. Ele morreu na capital carioca, em 2011, sem nunca dar entrevista sobre o caso. Álvaro Henrique é médico e mora no Rio de Janeiro. O Correio tentou contato com ele, pelo telefone do consultório, no bairro de Vila Isabel. A secretária informou que Álvaro, “não falaria sobre o assunto”.
Em depoimento ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2000, a mais recente declaração dele sobre o caso, Álvaro afirmou que foi torturado várias vezes por suposto envolvimento no assassinato. “O governo federal arranjou bodes expiatórios”, disse à época. Segundo ele, a verdadeira história do assassinato de sua irmã jamais aparecerá. “Os presidentes estão mortos, os ministros envolvidos estão mortos e seus filhos estão mortos.”
Na entrevista, ele diz ter descoberto desde o início que o governo não tinha interesse em investigar o crime. Conta que na primeira vez que foi à delegacia para acompanhar as investigações, ficou sabendo que havia “ordens superiores para parar as buscas”.
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