Seis meses e nove dias de prisão no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa. Dois anos de trabalho comunitário. Essa foi a pena imposta a Gorete Lopes, de 56 anos, por ter sido presa em flagrante pelo crime de tráfico de drogas, em Fortaleza. Foram encontrados com ela 75 gramas de maconha, quantidade que seria vendida por, aproximadamente, R$ 250. Como ela, 201.600 pessoas “rodaram” por crimes relacionados ao tráfico de drogas, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2016 – os dados oficiais mais recentes.
O número corresponde a 28% das incidências penais pelas quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardavam julgamento naquele ano. Entre os homens, esse percentual atingia 26% dos registros, enquanto, entre as mulheres, chegava a 62%. Em 2005, o índice de pessoas apenadas por crimes relacionados ao tráfico era de 14%, sendo 13% para os homens e 49% para as mulheres.
“A gente percebe nas entradas do sistema prisional essa representatividade [de crimes relacionados ao tráfico] muito maior, o que acaba refletindo o quantitativo geral da população prisional. Em 1990, a gente tinha cerca de 90 mil presos, desde 2016 passa de 726 mil, muito impulsionado também pelo crescimento da prisão relacionada ao tráfico de entorpecente”, explica a coordenadora-geral de Promoção da Cidadania do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Mara Fregapani Barreto.
Enquanto esteve detida, Gorete engrossou essas estatísticas. E não só. Sua história familiar é reveladora do que tem ocorrido no Brasil. A rotina árdua da vida no presídio foi dividida com a filha, Amanda Lopes, que havia sido condenada por tráfico seis meses antes da prisão da mãe. Amanda portava 0,5 kg de maconha e, por isso, foi condenada a dois anos e nove meses de detenção. Segundo Gorete, havia “várias, várias, várias. Muitas, quase todas” mulheres na mesma situação. Muitas delas, relata, atuaram como “mulas”, termo que se refere à atividade de levar drogas de um lugar a outro.
As estatísticas também mostram isso. Não apenas houve uma ampliação de 49% para 62% do percentual de mulheres presas por tráfico, entre 2005 e 2016, como uma verdadeira explosão do encarceramento feminino, que cresceu 698% no Brasil em 16 anos. Ao ser perguntada sobre os motivos que as levaram ao tráfico, Gorete, que por anos trabalhou como empregada doméstica para sustentar a família, não reluta em afirmar: “Falta de emprego, falta de condições”.
Essa dinâmica de encarceramento contraria a expectativa gerada em 2006, quando uma nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) foi instituída no país. O texto substituía uma regra de 1976 e trazia uma inovação: a distinção entre usuário e traficante. Os crimes definidos pela lei também diferem: ao passo que a posse para uso pessoal é considerada um delito de ínfimo potencial ofensivo, o tráfico de drogas é fortemente repreendido. Ao primeiro crime, restou prevista uma pena alternativa diferente da prisão, como advertência, prestação de serviços à comunidade ou obrigação de cumprir medidas educativas. Já o tráfico, pela regra, leva à prisão. Em casos desse tipo, a pena mínima passou de três para cinco anos, podendo chegar a 15.
O que ocasionou, então, o crescimento de prisões? Na opinião do advogado criminalista Cristiano Maronna, secretário executivo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e presidente da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a falta de definição precisa sobre o que é o uso e o que é o tráfico de drogas, bem como uma aplicação que ele considera desfuncional da norma.
“O Artigo 33 que trata do tráfico coloca como uma das condutas punidas a cessão gratuita de drogas de uma pessoa a outra. Isso não é tráfico, o tráfico envolve lucro. Outra coisa é que não se exige prova. A pessoa flagrada com determinada quantidade é presumida como traficante. Isso é inaceitável, porque o que se espera é que o Estado prove que aquela pessoa, de fato, trafica drogas, por meio, por exemplo, do extrato bancário ou por meio de uma investigação, com testemunhas etc. Nada disso é exigido, como regra, para uma pessoa ser condenada por tráfico”, afirma.
Na ausência de uma regra nítida, quem acaba fazendo essa distinção, nas ruas, é o próprio policial. No momento em que isso ocorre, outros aspectos e mesmo preconceitos acabam sendo levados em consideração. Maronna acrescenta que, “para quem tem carteira de trabalho assinada, provar que não é traficante não é tão difícil". "Para jovens, negros, moradores de comunidades e desempregados, essa prova é mais difícil. Então, é muito comum que usuários negros, pobres e favelados sejam processados e condenados como se traficantes fossem”.
Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e integrante do Conselho Diretor do International Drug Policy Consortium (IDPC), a socióloga Julita Lemgruber considera que a própria lei estabelece uma lógica de seletividade penal. Isto porque o Artigo 27 da norma fixa que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
“De maneira geral, quem está sendo preso no dia a dia é o jovem negro. Se a polícia pega um menino branco, que é um estudante universitário, frequenta uma universidade privada e está em seu veículo próprio, mesmo se estiver portanto uma quantidade grande de drogas, ele não vai ser considerado um traficante porque a reflexão imediada que o policial faz é: ‘esse cara não precisa traficar’. Enquanto que um menino negro, da favela, pego na rua, não importa que justificativa ele der para estar portando aquela quantidade de droga, ele vai sempre ser considerado um traficante”, a sociológa, que foi a primeira mulher a comandar o sistema prisional fluminense e já desempenhou a função de ouvidora da Polícia Militar no Rio de Janeiro.
A opção pelo encarceramento e o perfil das pessoas que estão sendo presas são confirmados pela pesquisa Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra, feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O estudo mostra que, em relação aos flagrantes por tráfico de drogas, 57,2% das pessoas que passaram por audiências de custódia foram mantidas presas enquanto aguardavam o julgamento. A incidência de manutenção da prisão por tráfico é mais frequente do que nos casos de violência doméstica. Neste caso, 39,8% permanecem encarcerados após a audiência.
O mesmo estudo mostra que jovens e negros são a maioria entre as pessoas que passaram por esse tipo de audiência no Distrito Federal, no Rio Grande do Sul, na Paraíba, no Tocantins, em Santa Catarina e em São Paulo, entre 2015 e 2017, locais e período sobre os quais se debruçou a análise. E aponta possível tratamento judicial mais duro para os negros. Enquanto 49,4% dos brancos detidos permaneceram presos e 41% receberam liberdade provisória com cautelar, tais percentuais alcançam 55,5% e 35,2% quando se trata de pessoas negras.
A seletividade é reforçada também pela falta ou precariedade das investigações. Sem inteligência policial, ações efetivas de controle nas fronteiras e inibição de atos ilícitos entre policiais e outros agentes de segurança, “as pessoas presas são, no mais das vezes, as pessoas que atuam nas franjas, são os varejistas que compõem o último elo da cadeia, enquanto os financiadores, as pessoas que controlam a cadeia mais produtiva e lucrativa, são praticamente intocáveis. Também em relação a isso, não há uma preocupação em, de fato, atingir o coração do negócio”, denuncia Cristiano Maronna.
De acordo com dados do Depen, em junho de 2016 eram 176.691 mil pessoas presas por tráfico de drogas; 20.133 por associação para o tráfico e apenas 4.776 por tráfico internacional. Questionada sobre a disparidade entre esses dados, Mara Fregapani Barreto afirmou que “não tem como dizer que a gente está prendendo pouco um ou outro, até porque, numa pirâmide organizacional, você tem muito mais gente na base do que no comando”.
Os especialistas ouvidos pela Agência Brasil concordam com a necessidade de se rever a política de drogas, pois consideram que o modelo atual faliu. “Essa chamada guerra às drogas é um equívoco, produz muitos mais danos e prejuízos do que um ganho para a sociedade”, destaca Julita Lemgruber, que tem desenvolvido estudo para quantificar os impactos dessa política em termos financeiros em outras áreas, como saúde e educação, já que a lógica da guerra às drogas produz mortos, impede crianças e adolescentes de frequentar escolas, além de trazer impactos psicossociais.
Para a socióloga, outra face evidente dessa política é a explosão da violência e o crescimento do poder de grupos criminosos. “O que acontece é que nós estamos entupindo as nossas prisões com pessoas que praticaram crime sem violência – é o caso da maioria desses meninos que são os varejistas do tráfico – e que, sem dúvida nenhuma, vão para unidades prisionais e ali vão ter contato com traficantes mais experientes, com lideranças locais e é evidente que esse vai ser o cotidiano desses jovens. Então, é natural que o resultado seja muito ruim.”
A legalização da produção, da comercialização e do consumo de todas as drogas é defendida pela socióloga como caminho para uma mudança estrutural do quadro. “O que a gente tem que lembrar é que liberadas as drogas estão, o que nós queremos é regular”, diz Julita Lemgruber. É o que países como Uruguai, Canadá e Espanha, de diferentes formas, e mesmo unidades da Federação dos Estados Unidos, onde surgiu a política de guerra às drogas adotada no Brasil, ainda nos anos 1970, têm feito.
“Mudar a política de drogas para outro sentido é urgente, porque essa abordagem punitiva e repressiva falhou. Além das drogas ilegais circularem de forma praticamente livre, apesar de proibidas – o que é o paradoxo do proibicionismo – nós temos efeitos mais danosos do que o abuso no uso de drogas. A guerra às drogas produz corrupção, violência, superencarceramento, fortalecimento das organizações criminosas”, sintetiza Cristiano Maronna.
Quem passa pelo sistema também carrega suas marcas. Hoje vendedora de lanches, Gorete Lopes ainda tem a vida permeada pela prisão, apesar de já comemorar quase dois anos fora das grades. “No dia que eu saí, que eu recebi meu alvará, eu saí de joelhos de dentro da cadeia, porque eu fiz uma promessa, porque o sofrimento é grande. Depois, quando saí, mudei de bairro. Você sabe muito bem que, quando a gente tem essa vida, a polícia nunca esquece de você. Nunca é um ex-traficante. E essa vida eu não quero mais nunca.”
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