Opinião: O debate desonesto da crise fiscal em tempos de Covid-19

Em 4 de maio de 2000 o país foi premiado com a sanção da Lei Complementar 101, batizada de Lei de “Responsabilidade Fiscal” a LRF, até hoje lembrada na defesa de medidas de “ajuste” visando o equilíbrio entre as receitas e despesas nas contas do país.

Porém, o que o conservadorismo não revela aos desempregados e aos mais pobres, que mais necessitam de políticas sociais e investimentos assumidos pelo Estado, é que a tal lei não é tão de “Responsabilidade Fiscal” como dizem, pois, se de um lado impõe limites aos gastos de pessoal como proporção da receita corrente líquida e exige que renúncias de receitas apontem seus impactos nos dois anos subsequentes, do outro, contudo, deixa livres de quaisquer controles os gastos com as despesas financeiras vinculadas à dívida pública, em especial com pagamento de juros e amortizações.

O professor e Gérson Lima, da UFPR, em Economia, Dinheiro e Poder Político (2008,pp.283-301), de forma didática, traz  a essência e os limites da referida lei. Vejamos adiante.

Quando da sanção da LRF, em 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou, no artigo 4º, inciso II, da lei, o limite imposto pelo Congresso Nacional às despesas com juros. Para FHC, “a introdução de limite para despesas com juros, ainda que com caráter referencial, suscitaria a interpretação de que o objetivo seria o não pagamento de juros” (texto original do veto). Haja imaginação. Além disso, o artigo 9º da lei impõe a suspensão do pagamento de quaisquer despesas, seja em educação, em saúde, para investimentos, em segurança, caso não seja garantida uma economia nos gastos públicos (a formação do superavit primário), antes das despesas financeiras, para pagar os juros da dívida pública. A LRF também prevê, no artigo 30, II, que, 90 dias após a sanção, seja enviado projeto de lei ao Congresso Nacional para firmar o teto da dívida mobiliária (em títulos públicos), que representa, há anos, a maior parcela de gastos públicos, a que mais desequilibra as contas do país, mas isso não foi feito até agora.

Por isso não há honestidade no debate da “crise fiscal” quando não estão sobre a mesa, para análise, todas as parcelas que compõem os gastos públicos e o que representa cada uma delas (pessoal e encargos sociais, custeio, investimentos, demais despesas correntes-juros, e de capital-amortizações), seus valores, sua importância para o país e os interesses por trás de cada uma delas.

Assim, como buscar o reequilíbrio, ou como administrar até mesmo um desequilíbrio provisório e produtivo entre receitas e despesas sem mexer na parcela que mais desequilibra as contas? Que parcela é essa e qual é o seu montante? Na proposta de lei orçamentária da União para 2021 é o pagamento de juros e amortizações, no total de R$ 2,235 trilhões de reais (intocáveis para fins de ajuste fiscal), sem retornos quando pensamos nos investimentos, produção de bens e serviços, em mais empregos, enquanto os gastos nas funções saúde, educação, habitação, saneamento, urbanismo, assistência social e ciência e tecnologia, já contidos, por vinte anos, desde a Emenda Constitucional 95/2016, representam 6,29 vezes menos que isso.

Já os investimentos das empresas estatais (R,29 bilhões de reais), serão 15,5 vezes menores que aquele montante. Sugere-se agora uma reforma administrativa (PEC 32/2020) para conter salários, concursos e progressão na carreira dos servidores federais que, com dois anos sem reajuste desde 2020, em 2021, representarão 6,19 vezes menos que os gastos com juros e amortizações da dívida pública.

Acontece que salário de servidor volta ao estado (como imposto), aos serviços privados (como tarifas) e à economia (como consumo), o que não ocorre com as maiores despesas, de R$ 2,235 trilhões de reais. São, assim, desonestos, o debate da crise fiscal do estado e as soluções apontadas, que só beneficiam os atuais privilegiados com a maior parte, intocável, dos gastos públicos. O ajuste das contas públicas deve ser pago pela riqueza e a renda altamente concentradas no país.

Paulo Rubem Santiago-Professor, Mestre e Doutorando em Educação (UFPE), ex-deputado federal