Rio São Francisco: Presidente do CBHSF fala sobre trabalho para evitar conflitos em anos de estiagem

De 2013 a 2019, a bacia do São Francisco viveu a maior seca já registrada na região. A falta de chuvas reduziu a capacidade dos reservatórios e tornou um desafio constante conciliar os diversos usos das águas do Velho Chico e de seus afluentes.

 No início deste ano, fortes chuvas atingiram a região, tornando a situação mais confortável – Sobradinho e Três Marias vão atingir capacidade máxima – e trazendo novas perspectivas para quem depende do rio para consumo e trabalho.

Enquanto a situação na bacia do São Francisco melhora, na Amazônia ocorre o oposto. Levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que, nos primeiros três meses deste ano, houve um crescimento de 51,45% no número de alertas de desmatamento na região em comparação com o mesmo período do ano passado.

Nesta entrevista, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, fala sobre o trabalho realizado para evitar conflitos e possibilitar que a comunidade do São Francisco passasse sem grandes turbulências pelos anos de estiagem. 

Miranda também compara o trabalho realizado na Bacia do São Francisco com o da Amazônia e critica o modelo predatório que atualmente dá as cartas na floresta. Além disso, analisa as consequências ambientais e sociais caso não haja, em breve, mudanças na gestão ambiental, hídrica e de desenvolvimento sustentável da Amazônia. Confira abaixo:

1. A Amazônia registrou, no primeiro trimestre deste ano, um crescimento de 51,45% no número de alertas de desmatamento em relação ao mesmo período do ano passado. Enquanto por lá a situação se deteriora, a Bacia do São Francisco experimenta melhoria nas condições ambientais, com fortes chuvas que romperam uma estiagem que já durava vários anos. Quais são as perspectivas agora para a região?

A bacia do Rio São Francisco atravessou a pior crise hídrica de que se tem conhecimento, que foi a estiagem de 2013 a 2019. Mas as chuvas deste início de ano mudaram a situação dos reservatórios. Três Marias ultrapassou os 100% de capacidade, abrindo inclusive suas comportas. E, em maio, Sobradinho também chegará a 100%. Do ponto de vista econômico, essa nova situação garante maior segurança hídrica, tanto para a agricultura como para a indústria e o abastecimento público. E a qualidade da água vai ter uma melhora significativa.

Também podemos comemorar um novo alento para as lagoas marginais, que, com as chuvas, passam novamente a ter ligação com o rio. Com essas novas chuvas, a biodiversidade, a vida aquática, as plantas e os peixes poderão ter uma recuperação importante.

Vamos partir agora para um gerenciamento das águas do São Francisco de um patamar mais favorável, ou seja, vamos tratar essa água que chegou agora com o máximo de cuidado, administrá-la de maneira conjunta com todos os usuários para tirar o maior proveito dela e evitar conflitos criados pelos usos múltiplos.

2. Nesses anos todos de estiagem, como foi possível conciliar os diversos interesses de todos que utilizam as águas do São Francisco e de seus afluentes?

A principal medida foi fazer o gerenciamento compartilhado da crise hídrica. Em 2013, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) sugeriu à Agência Nacional de Águas (ANA) a criação de um fórum permanente de debates. A agência aceitou e iniciamos um trabalho que hoje é modelo não só para o Brasil, mas também para outros países, onde foi replicado em bacias em situações críticas. E esse trabalho consiste em quê? Em chamar para o debate todos os usuários das águas, o governo federal, os estados, os municípios, representações da sociedade civil, da universidade, de organizações não governamentais que trabalham com a questão da água, sobretudo as populações tradicionais, ribeirinhas, de pescadores artesanais. 

Todos os envolvidos, das hidrelétricas ao agronegócio, da agricultura familiar às companhias de abastecimento, dos representantes dos grandes perímetros de irrigação aos pequenos agricultores de açudes do semiárido, trouxeram seus problemas, discutiram e encontraram soluções para evitar que os reservatórios principais da calha, que são Três Marias, Sobradinho e Itaparica, entrassem em volume morto. Foi uma experiência notável porque quando se tem pouca água, é como diz aquele ditado: “em casa que não tem pão, todos brigam e todo mundo tem razão”. Mas foi possível convencer, às vezes com mais dificuldade, às vezes com menos, que a melhor solução para os conflitos gerados pela escassez hídrica é o diálogo, o consenso, a tolerância.

3. Quais são os principais conflitos que precisaram ser administrados?

Por exemplo, entre a agricultura irrigada e a geração hidrelétrica. Enquanto para a produção de energia é preciso deplecionar, ou seja, diminuir o nível dos reservatórios para poder movimentar as turbinas, para o cultivo é o contrário, quem capta água nos reservatórios quer que ele fique o mais cheio possível. E quando se reduz vazões para manter o nível dos reservatórios, muitas vezes se prejudica o abastecimento público à jusante (rio abaixo em relação ao observador), porque com vazões menores, a qualidade do rio é mais crítica. 

A diminuição das vazões também agravou a intrusão salina na foz do São Francisco e as pessoas ficaram bebendo água salgada. Foi preciso toda uma movimentação pra minorar os efeitos daquilo. O Comitê inclusive usou recursos para ajudar comunidades dos municípios de Brejo Grande (SE) e de Piaçabuçu (AL), em parceria com a Defesa Civil e a ANA.

Esse trabalho em conjunto que realizamos nesses anos mostrou que as pessoas no São Francisco, apesar de todas as contradições, aprenderam a trabalhar juntas e, de alguma maneira, foram se convencendo que atuar em parceria é melhor do que isoladamente. E que chegar ao consenso é melhor do que ir ao confronto. Pois o confronto significa o quê? Judicialização. E a Justiça, evidentemente, tem limites até onde pode intervir e resolver os problemas, porque quando a judicialização é uma sina, não há tempo hábil pra se resolver tudo.

4. E esse modelo de gestão não poderia ser replicado, com os devidos ajustes, na Amazônia?

Se conseguimos implantar uma gestão coletiva e participativa bem-sucedida em uma bacia como a do São Francisco, que está no semiárido, que enfrenta problemas terríveis de estiagem, na Amazônia seria ainda mais fácil. Lá tem água em abundância, chuva em abundância, tem de tudo, então não seria um grande esforço. Com uma gestão adequada, participativa, é possível ter atividades econômicas responsáveis e, ao mesmo tempo, preservar a floresta de pé. Mas infelizmente essas políticas não estão sendo incentivadas.

5. O que poderia ser feito para melhor a situação socioambiental da Amazônia?

Do ponto de vista natural, a Amazônia não deveria ter qualquer tipo de problema, visto que a floresta e sua biodiversidade são seguramente os ativos mais valiosos que a humanidade tem. Mas, por falta de gestão, aliás, por sabotagem de gestão, existe ali um quadro dantesco. Em vez de um modelo de desenvolvimento, o que tem lá é um processo de devastação criminosa, uma economia criminosa, do roubo, da pilhagem, do saque. E isso não é um sistema produtivo, é um sistema de ladroagem, de enriquecimento ilícito, de genocídio de povos indígenas. 

Isso expõe também uma coisa óbvia: que a Floresta Amazônica precisa de gestão ambiental e de recursos hídricos e, ao mesmo tempo, de desenvolvimento sustentável. E desenvolvimento sustentável na Amazônia é sobretudo aproveitar a enorme riqueza embutida na floresta em pé, que é o maior diamante que o povo brasileiro tem, porque aquela biodiversidade pode oferecer soluções para a indústria farmacológica, de cosméticos e para vários outros setores da indústria. 

Isso agrega um valor incomparavelmente maior do que essa atividade criminosa e oportunista de grileiros, de madeireiros, muitas vezes com a conveniência de autoridades. Eles estão matando a galinha dos ovos de ouro do nosso futuro, que é a biodiversidade da Amazônia. Bastaria um grande esforço nacional de pesquisa, um grande programa estratégico de 10, 20 anos, para o Brasil se tornar o maior celeiro da indústria farmacêutica do mundo, apenas utilizando insumos e princípios ativos da flora amazônica. E isso pra não falar na indústria de cosméticos e de outros usos. 

6. Mas, infelizmente, o que se vê hoje na Amazônia é um aumento no desmatamento.

Agora, se aproveitando do trauma e das restrições causados pela pandemia de coronavírus, estão grupos de bandidos, grileiros, ladrões de terra públicas, madeireiras ilegais, fazendo uma nova ofensiva na floresta, o que é uma afronta ao Estado brasileiro. O que está acontecendo na Amazônia é um crime sem nome, um crime de lesa-humanidade, visto que estamos comprometendo o futuro das próximas gerações, que sequer nasceram, mas têm a expectativa de herdar um país e um território com um ativo fundamental como a Floresta Amazônica e os outros biomas

Isso precisa ser denunciado, exposto, está na hora de a Justiça, por meio dos tribunais e sobretudo do Ministério Público, agir energicamente, visto que muitas promessas foram feitas, de que não se repetiria no Brasil a vergonha internacional que foram aquelas queimadas no ano passado na Amazônia. Agora, com a proximidade do período seco, que começa em maio, há fundadas dúvidas de que iremos viver novamente esse vexame.

7. Até porque está havendo, na atual gestão, uma queda brusca na fiscalização

Isso é um contrassenso total. O Estado existe pra isso, é pago pra isso. A fiscalização é fundamental.

8. E essa situação de avanço do desmatamento não é exclusiva da Amazônia. O Cerrado e a Caatinga vivem o mesmo.

O Cerrado e a Caatinga também estão sendo impiedosamente devastados. Talvez esses biomas, silenciosamente, estejam sofrendo o mesmo grau de mutilação da Amazônia ou talvez até mais, no caso do Cerrado, que é fundamental para a recarga de aquíferos, para o regime de chuvas em todo o território do Brasil central, incluindo a bacia do São Francisco. Nenhum ambientalista, nenhum gestor de meio ambiente, de recursos hídricos, pode ficar calado diante disso.

9. Também tem havido um forte avanço sobre as terras indígenas.

O mais grave de tudo nesse contexto é que não é um problema só de biodiversidade, mas um problema humano. Há uma nova cruzada contra os povos indígenas, como se não bastassem 500 anos de genocídio dessas populações no Brasil. Porque de fato elas estão sendo abandonadas, as suas terras estão sendo vilipendiadas. As terras indígenas são uma conquista histórica, consagrada na Constituição, reconhecida pelo povo brasileiro em todos esses anos de construção de um arcabouço legal que garanta a esses povos um mínimo de reparo dos crimes de genocídio a que aqui foram submetidos. Mas infelizmente vemos agora que eles estão entregues à própria sorte.

10. É possível dizer que tem havido um desmonte das políticas ambientais do Brasil?

A gestão ambiental de recursos hídricos que está sendo construída há meio século neste país não pode ser desmontada, liquidada e vilipendiada da forma que está sendo atualmente. É preciso que a nação inteira, o país inteiro reaja a isso. Não é possível que se cometa crimes contra a Floresta Amazônica, o Cerrado e a Caatinga de forma impune. É preciso que se prepare as condições para que, quando possível, todas essas pessoas que estão prevaricando, que estão rasgando as legislações, tanto federal quanto dos estados, sejam levadas às barras dos tribunais para responder perante as futuras gerações por um crime que cada vez mais se assemelha aos crimes que foram cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, sem nenhum exagero. O que está se fazendo aí atenta contra interesses da humanidade, sobretudo interesses dos setores e das metas estratégicas do Brasil. É o interesse da população brasileira que está sendo queimado.

11. O Congresso Nacional está discutindo a chamada MP da grilagem de terra. A Frente Parlamentar do Meio Ambiente é contra e tenta bloquear a proposta. E o senhor, o que pensa a respeito?

Esse projeto de lei legaliza o roubo de terras públicas, em vez de tornar mais rigorosa a política de apropriação de terras no Brasil. O que se está fazendo é uma nova corrida para o oeste, o primeiro que chegar e declarar que é dono da terra ganha pela força, usando jagunços, usando todos os tipos de expedientes, inclusive falsificando papéis. Já se sabe que a presença do Estado de direito na Amazônia é muito frágil, então todo tipo de bandidagem acontece. Aí ficam falando em defender a Amazônia contra a teoria conspiratória, contra países que querem invadir... Não precisa, a Amazônia já foi invadida pelo pior tipo de gente, traficantes de droga, madeireiras internacionais piratas, traficantes de pessoas. Estamos esperando que o Estado brasileiro, o governo federal, o parlamento, cumpras seu papel em relação a isso. Nós estamos cumprindo com o nosso, que é denunciar esse projeto de lei. Isso não pode ser discutido dessa forma, é preciso ter um grande trabalho nacional. 

12. O que pode acontecer a médio e longo prazos caso não haja mudanças

Estamos vivendo o século das viroses que ameaçam a humanidade exatamente por conta do desflorestamento no planeta inteiro, da ocupação irresponsável de terras virgens sem nenhum critério, sem manutenção do equilíbrio do ecossistema. Essa pandemia do Covid-19 é só um aviso. Já tivemos várias nas duas décadas deste século. Já tivemos a síndrome do Oriente médio (MERS), a síndrome da Ásia (SARS), que também são coronavírus, tivemos o ebola na África. Nossa sorte é que o coronavírus, este de agora, não tem a mesma letalidade do ebola, mas nós não estamos livres de chegar um novo vírus como ele.

Essa pandemia está mostrando que, ou você ganha a população para ajudar as autoridades sanitárias a resolver o problema, ou vai tudo pro beleléu. É preciso a participação de todos para se construir as premissas de uma sociedade que possa enfrentar, neste século XXI, desafios que nem temos ideia de como virão. Essas duas primeiras décadas já estão sinalizando problemas graves. Só no Brasil, a cada seis meses temos uma novidade. A última foi o óleo que veio parar na praia. Antes disso foi a tragédia de Brumadinho, seguindo-se à tragédia de Barcarena, no Pará, e à de Mariana. Quer dizer, agora nós estamos sempre lidando com esses desafios. Por quê? Porque a espécie humana de fato desequilibrou o ecossistema e tem que aprender que não é assim, que tem que ter um diálogo com a natureza, visto que nós estamos dentro dela. 

Os nossos processos atuais de produção e consumo estão exaurindo o planeta, e a natureza, que é um organismo vivo, tem suas maneiras de fazer compensações. E ela faz. E quando faz, não pergunta aos seres humanos o que deve fazer, ela simplesmente faz. E essa nova era de extremos climáticos causados pelo aquecimento global já é um indício de que a natureza está procurando seus caminhos.