Fatores culturais e sociais contribuem para a persistência do feminicídio no País

O feminicídio é todo homicídio praticado contra a mulher por razões da condição do gênero feminino e em decorrência da violência doméstica e familiar, ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Na última década (2012-2022), ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente em 2022, foram 3.806 vítimas, o que representa uma taxa de 3,5 casos para cada grupo de 100 mil mulheres, segundo dados do Atlas de Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Aplicada).

Em 9 de março de 2015 entrou em vigor a primeira lei antifeminicídio no Brasil. Apesar dela representar avanços, os índices de violência continuaram altos. Quase dez anos depois, o homicídio de mulheres ainda continua em evidência no País. Helena Lobo, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, comenta a nova mudança da lei do feminicídio e exemplifica o que ela representa para o sistema judicial brasileiro.

“Essa alteração de pena veio apenas agora, com essa lei que foi promulgada, neste mês de outubro de 2024, que foi a lei 14.994 de 2024, que alterou a pena mínima para o crime de feminicídio de 12 para 20 anos de reclusão, e estabeleceu uma pena máxima de 40 anos de privação de liberdade. Hoje a gente tem uma pena muito maior, quando a gente compara o feminicídio e outras situações de homicídio qualificado, mas isso acaba de ser aprovado, então, na verdade, a gente vai passar agora até a aplicação dessa pena nova para os fatos praticados a partir de outubro de 2024”, acrescenta Helena.

Para compreender melhor sobre o que mantém o crime de ódio às mulheres vivo até hoje é necessário conversar sobre os fatores que influenciam esse preconceito. Acerca desse assunto, Eva Blay, professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), apresenta explicações para a manutenção do feminicídio no País e fala do patriarcado. “Se você tem uma sociedade patriarcal, onde o poder está? Numa figura masculina. Consequentemente, as demais articulações decorrem dessa posição subordinada que as mulheres passam a ocupar quando existe esse patriarcado. Tem uma raiz nisso tudo, que é esse patriarcado. O patriarcado é um contexto de poder, de força. Quem manda? Isso é patriarcado. Quem determina se uma mulher vai viver ou vai morrer? Então todas essas circunstâncias decorrem de uma sociedade que tem um poder, que está situado, construído e mantido numa figura que, no caso, é uma figura masculina”, afirma.

As mulheres, desde antigamente, são ensinadas a viver em função do homem e da família. Apesar dos avanços feministas, o conservadorismo masculino e a pressão social contribuem para que as mulheres permaneçam subordinadas aos homens e isso faz com que os altos índices de feminicídio se mantenham. “Essas questões são culturais, são sociais, elas estão muito arraigadas na mentalidade das pessoas, das famílias. O Direito Penal consegue dar alguma contribuição de forma muito pontual e ele precisa ser visto como uma pequena ferramenta num grande conjunto de medidas. E o grande problema é que a gente tem olhado demais para o Direito Penal e esquecido um pouco dessas outras medidas que estão muito relacionadas à mudança dessa consciência, à estruturação de formas dessa mulher sair desse ciclo de violência, enxergar esse ciclo de violência”, expõe a professora.

Helena Lobo ainda explica ações e ideias que são consideradas preocupantes em uma relação. “Normalmente, isso começa com agressões verbais, com uma pressão psicológica, com agressão patrimonial. A gente também tem um problema bastante relacionado à ideia de que a mulher deve cuidar da casa, dos afazeres domésticos, e aí esse companheiro acaba tendo todo o poder econômico desse núcleo. Então ele começa a usar isso contra essa mulher e, depois, a gente passa por um momento de agressões físicas e isso vai escalando até uma tentativa ou um feminicídio consumado”, desenvolve.

O aumento do movimento antifeminista também é um dos principais causadores do crescente número de assassinato de mulheres no País. Eva Blay discorre sobre esse movimento, que é decorrente dos avanços feministas vistos durante as últimas décadas. “O que eu acho que está acontecendo hoje é um grande movimento antifeminista. O que nós estamos assistindo agora é como se fosse uma reação dos homens, justamente porque eles estão percebendo que estão perdendo esse patriarcado. O que eles estão propondo é uma volta em que o homem manda, a mulher obedece, a mulher fica em casa, tem os filhos, não trabalha. Esse antifeminismo, na verdade, é uma nova reação a esse avanço que as mulheres tiveram. À medida em que nós fomos, pelo feminismo, alcançando igualdade de oportunidades e de direitos, uma camada masculina reage a isso e agora nós temos um grande movimento antifeminista”, desenvolve a professora.

Para diminuir os índices de feminicídio no País, é necessário não apenas reforçar o sistema Judiciário brasileiro como também buscar alternativas mais eficazes, que combatam devidamente as raízes do problema. A esse respeito, Helena fala sobre políticas e estratégias a curto, médio e a longo prazo para combater essa problemática. “Com relação às políticas e estratégias mais eficazes de prevenção, a gente precisa pensar em curto, médio e em longo prazo. A longo prazo, por mais que pareça que isso vai dar respostas daqui a muito tempo, o fato é que a gente precisa trabalhar, porque é a única forma efetivamente de chegar na raiz do problema, que tem muito a ver com educação, com redefinição dos papéis sociais, com muita atenção à infância, primeira infância, quando vão se construindo esses símbolos dos papéis de gênero, mas a gente precisa pensar também em medidas mais imediatas,” discursa a professora de Direito Penal.

Helena Lobo conclui, ressaltando a importância de uma estrutura adequada para receber as mulheres vítimas de violência doméstica. Segundo a professora, com essas estratégias, seria possível mitigar os crimes contra as mulheres. “Tem coisas muito importantes como a estruturação adequada das Delegacias da Mulher, essas delegacias precisam funcionar aos finais de semana, precisa ter atendimentos, pelo menos em alguns locais da cidade, 24 horas, porque a violência acontece mais aos finais de semana, a gente precisa também ter estrutura para essa mulher que muitas vezes sai de casa com a roupa do corpo, sem dinheiro, conseguir ficar nem que seja por uma noite, em muitos casos por mais tempo, para conseguir voltar ao lar, retirar suas coisas, ter um lugar onde ela possa começar a reconstruir a sua vida”, conclui.

Jornal da Usp