Nas cidades mais populosas do Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, as bibliotecas comunitárias são espaços com histórias tão singulares que poderiam ser contadas em obras como aqueles livros que estão enfileirados nas estantes. A busca por diversidade e pela formação de novos leitores vai também além dos livros. Esses espaços são pontos de vida, de páginas viradas e de transformações que surgem a partir de sonhos individuais e comunitários.
Em São Paulo, a Biblioteca Comunitária Djeanne Firmino fica na convergência de ruas em que a numeração das casas se embaralha, uma esquina do bairro Jardim Olinda, na zona sul de São Paulo. Djeanne identificava-se como mulher negra de pele clara, mas não sentia acolhimento no convívio com outras pessoas, nem negras, nem brancas. Ela tirou a própria vida em julho de 2014. Apesar de não ter sentido pertencimento de um modo geral, na biblioteca que frequentava, ela encontrou aceitação e carinho das crianças que adorava.
Até assumir a forma que tem hoje, a Biblioteca Djeanne Firmino passou por uma série de transformações. Tudo começou por iniciativa do poeta Robinson Padial, mais conhecido como Binho, que já teve um bar e organizou, com o apoio da família, saraus e a bicicloteca, um projeto em que leva livros em uma bicicleta para emprestar, doar ou receber. Dos saraus, surgiu a biblioteca, em 2009, primeiramente na favela da Chapena, na zona sul paulistana.
Depois, o mesmo espaço virou Brechoteca, uma mistura de biblioteca com brechó. Com a venda de itens diversos, inclusive eletrodomésticos, as estantes eram alimentadas com mais livros. Quem estava à frente da biblioteca popular era a coletiva “Achadouras de Histórias”, que decidiu honrar a memória de Djeanne, frequentadora do local, emprestando seu nome ao espaço.
Recentemente a equipe conseguiu fazer a catalogação dos livros por cores, para facilitar o sistema para “quem ainda não é leitor”. O acervo vai preenchendo os cômodos da casa, vindos de vários lugares: por doações de vizinhos e editoras; pela Rede LiteraSampa, que abrange 18 bibliotecas comunitárias de São Paulo, Guarulhos, Mauá e Santo André; e por meio de editais, além da parceria com o Consulado da Alemanha.
Os exemplares que chegam em mau estado também são aproveitados. Eles são levados para a reciclagem e geram recursos para a compra de outros livros.
Um grupo que frequenta regularmente a Biblioteca Djeanne Firmino é a “família K”, como são carinhosamente conhecidos os irmãos que têm nomes com a inicial K. “Eles sempre ficaram brincando na rua até tarde da noite. Abre a biblioteca, e eles já vêm para cá. Teve grande importância a biblioteca na vida deles, que estavam sempre na rua, procurando coisas para fazer. Teve um período em que estavam todos os dias aqui, saíam às oito da noite”, conta a pedagoga Vânia Duarte, medidora de leitura do espaço.
Para ela, foi uma descoberta e tanto perceber que as bibliotecas poderiam ser um local de intercâmbios de conhecimento e percepções sobre questões sociais, e não um em que se deve manter silêncio, rigorosamente.
No lar onde Vânia cresceu, não havia o hábito da leitura. O pai conseguiu a proeza de concluir o ensino superior aos 72 anos. Ela iniciou o curso de Relações Internacionais, e não terminou por conta de uma gravidez. Foi apenas em 2020 que ela se formou em Pedagogia, graduação feita com a ajuda do Programa Universidade Para Todos (Prouni).
Hoje, a correria da rotina dita o ritmo e impede Vânia de achar brechas para sustentar assiduidade na leitura. Quando tem um tempo, contudo, gosta de poesia, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Clarice Lispector.
“Eu tenho uma lembrança muito legal do ensino fundamental: a professora de português. Ela pegou um livro, um romance, e lia toda semana. A gente já ficava na expectativa de saber qual era o final daquele livro. Era a professora Edna, uma japonesa. Isso me marcou bastante", revela a mediadora, evidenciando que, para cativar cada leitor em potencial, é necessário um chamariz diferente.
“Aqui, nosso carro-chefe é a justiça social”, destaca a geógrafa Alessandra Leite, coordenadora de projetos da biblioteca. Ela aponta que o espaço dá muita ênfase à literatura infantil e às obras de grupos racializados, como negros, indígenas e amarelos.
“A gente nunca chega com a literatura crua. Nunca”, destaca a coordenadora, sentada diante de um quadro com palavras como desigualdade e raça. Ela defende que, ao se apresentar uma obra, se faça a conexão com contextos sociais.
Alessandra é de família baiana e de baixa escolaridade e diz que foi uma de suas avós quem mostrou a ela a importância da leitura, ainda que atrelada a uma ideia de livros mais técnicos e ao estudo formal. “Ela dizia: ‘Estuda para ser alguém’. Dava um valor [à leitura] que ela não conhecia no corpo, mas sabia que, perante a sociedade, tinha um valor. Então, ela sempre me estimulou muito a estudar, mesmo sem saber o que isso significava. Deu muito apoio", conta.
“Quando eu saí da Bahia, aos 5 anos de idade, uma tia que me trouxe disse: ‘Olha, a sua avó está te levando para São Paulo para você estudar’. Eu brinco que escrevi isso na pedra. Essa foi minha missão de vida aqui. A leitura sempre ficou nesse lugar.”
Agencia Brasil
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