Reportagem Especial: O rio São Francisco ganha força, mas já não vai bater no meio do mar

O reservatório de Sobradinho, no norte baiano, atravessou uma das piores secas dos últimos 80 anos. No ano de 2017 o volume útil atingiu 1% e a previsão era que o reservatório chegasse ao “volume morto”. O nível da água foi o pior da história.

A estiagem prolongada fez o Rio São Francisco perder força na divisa de Alagoas e Sergipe. Na foz onde fica localizado o Farol do Cabeço, com pouca água e quase sem forças o rio perdeu a luta e o mar avançou sobre a água doce do Velho Chico. O fenômeno é conhecido como Cunha Salina, segundo pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), provoca transformação do ecossistema da região e prejudica a população ribeirinha.

O avanço da "cunha salina" ocorre a partir da redução da vazão do rio, normalmente em épocas de estiagem ou demais fenômenos meteorológicos. Com isso, o equilíbrio de forças entre o rio e o oceano é afetado, permitindo o avanço da maré e a presença de água salgada ao longo do rio São Francisco.

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As consequências da degradação do rio São Francisco são sentidas com mais intensidade no Baixo São Francisco, que fica na divisa dos estados de Sergipe e Alagoas, onde o Velho Chico encontra as águas salgadas do Oceano Atlântico. E é justamente nesse encontro que cada vez mais o São Francisco vem levando
desvantagem, pois, com a diminuição da vazão, o rio não tem mais tanta força para conter a entrada da água do mar, o que acarreta mudanças no ecossistema.

Em 2017, com menos água no leito, o rio acabou sendo "empurrado" pela mar. E até peixe do habitat do mar foi encontrado nas águas doce do rio São Francisco. O Rio São Francisco de tantas lendas e histórias, fonte de sobrevivência de milhares de famílias ribeirinhas, literalmente chegou a 'agonizar". Muitos apostaram em sua morte, pois o “Velho Chico” estava desidratado, maltratado, precisando de investimentos urgentes para sua recuperação. 

Ainda hoje os ribeirinhos contabilizam os prejuízos, porque a pesca na região diminuiu e lavouras tiveram que ser abandonadas por conta do sal. A "salvação", quase milagre, veio dos céus: muita chuva no início deste ano 2020, prinicipalmente em Minas Gerais ajuda atualmente a aumentar o volume de água na bacia do Rio São Francisco.

A interpretação de Luiz Gonzaga na poesia de Zé Dantas, na música Riacho do Navio é até ironizada. Ao contrário do que cantou o Rei do Baião, dizem: o São Francisco não mais “vai bater no meio do mar”. O espetáculo das águas já não existe faz muito tempo. O homem matou o Velho Chico de tanto explorar, acusam os pescadores e moradores que resistem nas margens do Opará, na linguagem indígena, Rio que é mar.

"Riacho do Navio corre pro Pajeú, o rio Pajeú vai despejar no São Francisco, o rio São Francisco vai bater no 'mei' do mar, o rio São Francisco vai bater no 'mei' do mar", a canção, agora só ecoa na alma, coração e memória dos mais antigos, ficou na memória e faz lágrimas quando é ouvida em algum rádio ou no sacolejado de uma sanfona.

Atualmente o trecho da Área de Preservação Ambiental (APA) da Foz do São Francisco, entre os municípios de Piaçabuçu (AL) e Brejo Grande (SE), que o fenômeno pode ser percebido com mais intensidade pelos quase 25 mil habitantes da região. O rio São Francisco voltou a ter um "pouco mais de força".

Graduado em Gestão Ambiental com especialização em Recursos Hídricos, Saneamento e Residência Agrária em Tecnologias Sociais e Sustentáveis no Semiarido, membro do Comitê Hidrográfico da Bacia do São Francisco, Almacks Luiz Silva diz que o rio São Francisco "batia (desaguava) no meio do mar quando tinha a sua vazão média de 4 mil metros cúbicos por segundo, antes da chegada das barragens."

"Com a construção de Sobradinho, o Complexo de Paulo Afonso que é o fio de água (o que chega de água libera) não influi e a barragem de Itaparica e Sobradinho, reguladoras, a partir da barragem de Sobradinho em tempos normais como estamos tem que operar com 1300 metros cúbicos por segundo. Enfim, o rio já não vai bater no meio do mar, mas não fica na situação que estava", explica Almacks.

Graduada em Ciências Biológicas, Maria Regina Oliveira Silva, mestre em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, avalia que a situação melhorou devido as chuvas. " A situação melhorou mas isto é passageiro em locais onde os impactos são maiores. Vivemos numa região naturalmente seca". 

De acordo com a professora o Rio São Francisco é muito agredido da nascente até a foz onde desaguá no oceano Atlântico. "São diversos usos e muitos inadequados, o assoreamento é constante, o impacto ambiental é enorme. É preciso um trabalho ambiental constante", diz Regina Oliveira. 

A construção de barragens provocou  alterações significativas na dinâmica natural de rios, de estuários, da zona costeira e, consequentemente, o recuo das margens.

Entre 2008 e 2012 uma equipe de pesquisadores liderada pelo professor José Alves Siqueira, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina, Pernambuco, promoveu 212 expedições ao longo e no entorno do São Francisco. O estudo foi reunido no livro “Flora das caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação” (Andrea Jakobsson Estúdio).  O trabalho é considerado o mais profundo estudo sobre a Caatinga, único bioma exclusivo do Brasil. O título do primeiro capítulo é emblemático: ” A extinção inexorável do rio São Francisco.

Segundo o autor do livro, os problemas são inúmeros mas, talvez, os mais graves sejam as grandes barragens para a produção de energia, há cinco delas (em Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó) que geram 15% da energia produzida no país.

Além destes, pode-se destacar como importantes outros problemas, entre eles a quantidade imensa de esgotos não tratados jogados no leito do Velho Chico ao longo de seus quase três mil quilômetros da nascente até a foz. As barragens impedem a piracema. Como os peixes não podem mais subir o rio para se reproduzirem, o declínio das espécies e cardumes é evidente.

O livro mostra que restou apenas 4% da vegetação original das margens do São Francisco. Sem mata ciliar a erosão toma conta das margens contribuindo para o assoreamento do leito.

O coordenador de geografia do IBGE, Claudio Stenner, explica que, ao longo de milhões de anos, o rio carrega sedimentos do continente e os deposita junto à foz, avançando em relação ao mar. Porém, com a construção de barragens, boa parte dos sedimentos não chega mais a esse ponto. Dessa forma, reduz-se a capacidade do rio de depositar sedimentos, o que acarreta a erosão da costa. O controle de cheias e vazões das hidrelétricas também interfere no depósito de sedimentos, pois muda a sazonalidade natural dos rios.

Stenner também explica que o processo estrutural de ocupação da bacia do São Francisco, tanto urbana quanto agropecuária, vem causando degradação e perda de vegetação natural em muitas áreas: “isso leva a uma redução na capacidade de recarga de todo o sistema: sem a vegetação, quando chove, a água escoa e não tem armazenamento, o que também causa um maior assoreamento do rio”.

Outro fator é a disputa pelo uso da água: o volume de água do rio é limitado, e a água do Velho Chico é fundamental para o abastecimento, para a irrigação, para a produção de energia.

“Esse gerenciamento nem sempre é isento de conflito porque, se eu aumento a produção de energia elétrica, reduzo a água para irrigação. Se eu seguro a água na barragem, reduzo a vazão na foz. Se reduzir a vazão da foz, o mar vai entrar mais”, exemplifica Stenner.

A secretaria de Meio Ambiente de Piaçabuçu, Alagoas foi procurada pela reportagem da redeGn, mas até o momento não respondeu aos questionamentos referentes a defesa do Rio São Francisco na região.

O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra (MG), e chega à sua foz, no Oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe, percorrendo cerca de 2.800km, passando por Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. O Velho Chico é o rio 100% nacional com maior extensão. A bacia possui 503 municípios e engloba parte do Semiárido, que corresponde a aproximadamente 58% desta região hidrográfica, que está dividida em quatro unidades: Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco.

A Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) informa que desde o início do ano a atual situação dos reservatórios no São Francisco, vem melhorando. Segundo o órgão, a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco estava no seu período chuvoso, que vai de novembro e terminou no último mês de abril.

A Chesf, afirma em seu site, que houve uma melhora significativa no armazenamento dos principais reservatórios, atingindo os seguintes volumes úteis:  Três Marias 99%. Sobradinho deve atingir 95% até o final do mês e que considerando as condições hidrólogicas é importante para o atendimento aos usos múltiplos da região no próximo período seco.

Redação redeGN Fotos Ney Vital